No armário da minha sala eu tenho três injeções de adrenalina, dois xaropes anti-histamínicos, uma embalagem de comprimidos S.O.S.. Não, não estou a falar de uma enfermaria, é uma sala de um jardim-de-infância onde, por acaso, estão crianças com diversas alergias. Viver a infância com restrições não é fácil, mas é possível. Tenho medo? Sim... tenho medo. Mas ultrapasso cada dificuldade, cada dia, com uma boa sensação de realização. Na minha sala não há giz no quadro de lousa. Quando vou ao parque tenho de ter atenção máxima por causa das abelhas, se alguma aparecer e picar aquela criança, o caminho é o hospital. Se alguém trouxer marisco de casa para comer, tenho de pensar em dividir o grupo em duas salas. Os dias de festa de aniversário são experiências radicais. Controlar bolos, sumos, cupcakes, chocolates e guloseimas não é tarefa fácil. Aprendi a ler rótulos há muito tempo, quando com o meu primeiro grupo, existia uma balança na sala para contar proteínas. Está-me a ser muito útil essa experiência, novamente este ano. Sempre que alguém traz umas bolachas para partilhar com os amigos, eu rezo para que venham acompanhadas de uma receita - como foi pedido no início do ano - para ter certeza que aquela criança pode comer. Os dias de culinária na sala são verdadeiras aventuras.
Antes, eu fazia culinária na sala, impreterivelmente, de quinze em quinze dias. Quando as primeiras restrições foram aparecendo, eu fui ficando com medo e fui deixando gradualmente de fazer culinária na sala. Ai o medo. O medo apoderou-se de mim. "E se o chocolate que vou usar tem vestígios de frutos secos, como vou fazer scones sem farinha de trigo, qual o bolo que não leva ovos, que frutas posso usar numa salada de frutas? " As perguntas assolavam-me como pequenos e agudos alarmes, daqueles que nos fazem ficar a doer a cabeça. A solução mais fácil e cobarde foi ir gradualmente deixando de fazer culinária na sala. Sem cozinha na escola nova, tinha a desculpa perfeita para não fazer culinária nunca.
Mas, cada vez que olhava para a agenda e em letras gordas lia "Culinária" sentia-me cobarde. O medo apoderou-se de mim e estava a corroer-me. Há uns dias tomei a decisão de não sentir mais medo, de ultrapassar as dificuldades e conseguir que todos na sala pudessem passar por esta experiência incrível e enriquecedora que é meter as mãos na massa, contar gramas, pesar numa balança, misturar ingredientes e sentir o prazer de comer o que prepararam. Uma oportunidade, acima de tudo, daqueles que têm alergias, não se sentirem excluídos.
A força para esta mudança, não foi interior, não veio de dentro... a força para esta mudança veio das crianças, das suas sugestões no diário, das suas vontades e desejos. A proposta veio da Matilde: "Queremos fazer panquecas!" Ai, o que eu tremi. A Matilde não pode comer trigo, nem leite e só há algum tempo teve alta para os ovos. Não desviei a conversa, não ignorei o pedido. Enchi-me de força... da força que eles me passam. Pedi ao tio Mário uma máquina para fazer panquecas, pedi à mãe da Matilde farinha de espelta, pedi à Cristina (na escola velha) que me mandasse ovos, de casa levei um saco com varinha mágica, taças, fiambre de peru, queijo, açúcar, canela, manteiga e o livro de receitas antigo que escrevi quando saí de casa da minha mãe.
No dia marcado, duas taças de cor diferente, dois pratos de cor diferente, muito cuidado para não misturar ingredientes, não contaminar uma massa com a outra. De um lado a farinha de espelta, do outro a farinha de trigo. De um lado um grupo de amigos com a Matilde, do outro um grupo de amigos com o Eduardo - o Eduardo não pode comer espelta!
No final, a certeza que não podia ter sido melhor. Venham daí mais dias de culinária, venham daí mais receitas que podemos fazer. Vão se embora os medos... Um dia de cada vez, uma receita de cada vez. Uma certeza: É possível!
Beeemmmm! Eu teria muito medo! Boa Marta!
ResponderEliminarAdmiro-a imenso!
ResponderEliminarCorajosa....Parabéns
ResponderEliminarO relato é lindo... Lindo... Força aí. Espero que tudo continue a correr bem
ResponderEliminarParabéns! (pela partilha, pela coragem, por não baixar os braços apesar de, tal como reconhece, ser o caminho mais fácil)
ResponderEliminarObrigada por partilhar um medo tão intimo, pela sua exposição.
...
chorei...
Susana
Pena, ainda haver poucas "Martas" por aí! não custa quando há vontade...
ResponderEliminarParabéns
Sou mãe de um menino alérgico às proteínas do leite de vaca e ao ovo. A caminho dos três anos, deverá ir para o jardim no próximo ano. Que bom seria que o acompanhasse uma educadora como a Marta. Parabéns!!
ResponderEliminarOlá! Muitos parabéns por este testemunho de inclusão! :-)
ResponderEliminarParabéns! Sim, porque é possível... Parece difícil e a primeira reacção é ir adiando, mas presentes de uma lista de alergeneos na sala, com a colaboração das famílias ( que partilham a sua sabedoria com os substitutos seguros) quando terminamos a nossa actividade, vemos que todo o esforço valeu a pena, todos ficamos a ganhar, e SIM, é possível! :)
ResponderEliminarParabéns! Sim, porque é possível... Parece difícil e a primeira reacção é ir adiando, mas presentes de uma lista de alergeneos na sala, com a colaboração das famílias ( que partilham a sua sabedoria com os substitutos seguros) quando terminamos a nossa actividade, vemos que todo o esforço valeu a pena, todos ficamos a ganhar, e SIM, é possível! :)
ResponderEliminarMuitos parabéns. Todos os profissionais deveriam de ter esta postura perante as diferenças
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